Fim da censura: em 03 de agosto de 1988 era assinado o texto que acabava com a censura e a tortura no Brasil

A censura vigorou no país durante o período do Regime Militar (1964-1985) e era aplicada em diferentes esferas da sociedade com base em critérios morais e políticos. Desde o trabalho informativo até culturais, como festivais de música e teatro, eram avaliados pelo Governo para só então chegarem ao público.

No dia 03 de agosto é comemorado o fim da censura no Brasil. Neste dia, em 1988, foi votado pela Assembleia Constituinte de 1987 o texto da Constituição Federal que cessava a censura e a tortura no país. A data é um marco importante para a redemocratização do país.

Essa é uma data simbólica, pois leva a sociedade a refletir e celebrar a importância e o direito à liberdade, garantida pelo inciso IX do Artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que diz que “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

O CRESS-PR conversou sobre o tema e sobre como o Serviço Social pode contribuir para o combate à censura com a docente da UEL e pesquisadora, Andréa Pires Rocha, que atuou na execução de medidas socioeducativas e na Assistência Social. Para entender o panorama, é preciso analisar o contexto histórico do nosso país. A conversa com Andréia é uma aula de sociologia e conhecimento. 

Segundo Andréia, “a Lei de Segurança Nacional, que define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social está bem viva e recorrentemente é utilizada para perseguir os movimentos sociais”.

Promulgada em 2013, a Lei nº 13.260, conhecida como “Lei do Terrorismo”, regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista, além de alterar as Leis nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e 12.850, de 2 de agosto de 2013.

“A lei de 2013 veio logo depois das “Jornadas de Junho” de 2013, mas falava especificamente das organizações criminosas. Em 2016, foi ampliado o conceito de terrorismo, enquadrando movimentos sociais como terrorismo. A seletividade penal se mostra nos argumentos abaixo, exemplo de quando Rafael Braga foi o único mantido preso por conta das jornadas de julho de 2013”, completa Andréia.

Leia abaixo a entrevista completa:

Como a censura afeta a execução das políticas sociais no Brasil?

Andréa — Precisamos pensar em alguns elementos que estão na esfera da superestrutura e subsidiam a estrutura. Quando falo de superestrutura, me refiro às relações ideológicas e políticas que se materializam em leis e normativas que visam manter a ordem capitalista. Essa lógica se consolida a partir das revoluções burguesas no século XIX, contexto que se desenham a partir do pensamento liberal, o que entendemos hoje por Democracia, Liberdade, Direitos Humanos, todos os valores determinados pelo direito à Propriedade privada. Por isso, é importante regressarmos um pouco mais na história, pois o contexto colonial e o racismo que justificou a escravização e sequestro dos corpos negros africanos, aconteceu sob a égide de muita violência, para subsidiar o processo da acumulação primitiva. Para as pessoas escravizadas, coisificadas e mercantilizadas, o direito à expressão era impensável. Mesmo assim, o Estado moderno conviveu pacificamente com a manutenção da colonialidade. Ou seja, democracia e liberdade nunca foi para todos. No Brasil, a opressão colonial primeiramente se voltou contra os povos indígenas, impetrando violência física e ideológica, a cristianização forçada, o abandono a cultura. Contra as pessoas negras se deu abaixo dos horrores da escravidão, da violência, da opressão. E mesmo após a abolição 1888 e a implementação da República em 1889, os horrores permaneceram, porém, forma ressignificados a partir da persistência do racismo estrutural, das exclusões, o que Abdias do Nascimento traduz como genocídio do negro brasileiro, que se dá pelo embranquecimento físico e cultural. Há também a imposição de uma invisibilidade para as lutas populares implementadas desde o contexto colonial, a luta indígena, quilombola, as insurreições, a história do protagonismo negro e popular é negado, criando nas crianças uma ideia de que os negros e indígenas aceitaram passivamente as violências que eram submetidos. Então, falar de censura, é falar de uma das formas de opressões decorrentes da violência impetrada historicamente pelo racismo, pelo colonialismo, pelo patriarcado e que são mantidos no capitalismo, determinando poderes. A democracia burguesa é frágil em sua materialização, pois representa o poder europeu/estadunidense, branco, homem. No Brasil não é diferente, pois as relações sociais do país foram construídas a partir do racismo, do patrimonialismo, do autoritarismo. Quando vamos para história recente, vemos períodos intermitentes de democracia e ditaduras. Período de Vargas, a Ditadura Militar e o que vivemos hoje são exemplos concretos. Neste sentido, fico reticente com o debate específico sobre “censura”, pois essa foi legalmente abolida no Brasil em 1988, falo sobre aquele modelo implementado no contexto da ditadura militar. Por isso, muitos irão dizer que não existe censura no Brasil e desta forma camuflarão a opressão, o cerceamento da liberdade de expressão, as limitações do direito de ir e vir, enfim muito controle que existe de fato, sem legislações que o permita. Quando o Deputado Eduardo Bolsonaro, fala que é preciso estabelecer um “novo AI 5”, ele já tem o respaldo dessa ditadura que existe na realidade, pois se a sociedade fosse intransigentemente democrática, ele nem ousaria falar isso. Quando o Sergio Camargo, presidente da Fundação Palmares, proíbe a permanência de obras da biblioteca, é só uma consequência sórdida da própria presença dele nessa entidade que tem uma importância histórica. Quando a Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, fala que menina veste rosa e menino veste azul e que ela é terrivelmente evangélica, é a prova de que o Estado, que na realidade nunca foi laico, está assumindo uma condução assumidamente teocrática. Falando nisso, o último exemplo é o motivo da escolha do nome de André Mendonça, indicado para o STF, que é terrivelmente evangélico e como Ministro da Justiça ou Defensor Geral da União, iniciava as reuniões com uma oração. Esses são só alguns exemplos que implementam na prática projetos como Escola Sem Partido e muitos outros. Ou seja, é certo que esse poder assentado na falta de democracia e na censura de fato atinge as políticas sociais, pois define público, padrões e, pior que isso, legitima violências, racismo, machismo, LGBTQIA+fobia, entre outras.

Temos visto a disseminação de muitas Fake News. Em tempos de pandemia e em relação a vacinação contra uma doença que já matou mais de 550 mil pessoas isso se torna ainda mais sério. Você acredita que isso tem a ver com algum tipo de censura?

Andréa — De novo eu digo que a redução das opressões a temática da censura pode camuflar uma lógica opressiva e cerceadora que está muito viva, e que ocupa inúmeros espaços nas relações sociais. A questão da ideologia dominante é muito importante, pois é a partir dela que se convence sobre a existência de “verdades”. A população brasileira é privada do direito à educação, do direito ao pensamento crítico em sua base. A população brasileira é majoritariamente cristã. Ou seja, as convicções religiosas, na maioria das vezes construídas a partir de um convencimento fundamentalista, faz com que as pessoas acreditem que um Estado “terrivelmente cristão” é o melhor. Outro elemento que fortalece essa lógica é o discurso do medo proferido nos programas policiais, que geralmente as pessoas mais simples assistem todos os dias. Esses programas legitimam o discurso do ódio, contra dos Direitos Humanos, LGTBQI+fóbico, defesa da pena de morte, e por aí vai. Religiões fundamentalistas somadas aos programas televisivos de cunho policiais são os ingredientes perfeitos para a aceitação de Fake News.  Logo, o que o Presidente da República, seu grupo de trabalho e apoiadores disseminam nas redes sociais, é entendido como verdade. Pensem comigo: se é o Presidente da República quem diz que não vai tomar vacina, para grande parcela da população isso é entendido como narrativa oficial, não como fake. No caso da pandemia, infelizmente, as mortes tomaram proporções imensuráveis, o que talvez tenha mostrado para as pessoas a importância da vacinação. Pelo que tenho visto, a grande maioria da população está optando pela vacina. Por isso, a pauta por pão, trabalho e vacina, é muito importante!

Como as(os) Assistentes Sociais podem colaborar para acabar com a censura no país?

Andréa — Nós, Assistentes Sociais, precisamos em primeiro lugar romper com a lógica racista, capitalista, LGBTQIA+fóbico, meritocrático e patriarcal que nos forma. Não é fácil, pois muitas vezes estão interiorizados em nós a partir do poder ideológico. Romper com isso é uma tarefa diária! Precisamos estudar bastante, ler autoras feministas negras, como Lélia Gonzales, Beatriz do Nascimento, entre outras, pois estão há muito tempo falando da intersecção entre questão de classe, racial, gênero e sexualidades. Aproveito o momento para reparar a invisibilidade histórica imposta à Maria de Lourdes do Nascimento e Sebastião Rodrigues Alves, assistentes sociais negros que compunham o Teatro Experimental do Negro, e desde a década de 1950 falavam da importância de se enfrentar o racismo que persiste no modo de produção capitalista. É essencial que os profissionais implementem ações na esfera da educação popular e de combate às opressões presentes na sociabilidade racista e capitalista em seu cotidiano de atuação, trilhando o caminho dos princípios éticos-políticos da profissão. Assim, podemos promover mudanças nas instituições que atuamos, nas ONG´s, nas comunidades, e somarmos por uma sociedade mais livre.

A questão da militarização é implementada pelo Estado neoliberal de cunho penal, que desmonta os sistemas de garantia de direitos e fortalece sistemas punitivos, de penalização, e os Assistentes Sociais muitas vezes são utilizados para o fortalecimento destes mecanismos opressivos, principalmente aqueles que atuam no campo Sociojurídico. É importante que estudemos sobre o Estado Penal. Minha sugestão é o Loic Wacquant, como também, sobre o que está por traz do proibicionismo e da guerra às drogas, sugiro Michelli Alexander, Luciana Boiteux, Daniela Ferrugem, e até alguns escritos meus sobre este tema.

Outra pauta que está muito em voga nos últimos tempos é a volta do voto impresso. Você acredita que isso pode contribuir para a volta da censura?

Andréa — Essa é uma pauta construída para cimentar justificativas para a implementação de uma ditadura de fato em 2022. Digo de fato, pois na ditadura já estamos.  Até pouco tempo atrás a população brasileira nem olhava para essa questão das urnas eletrônicas. Era um consenso consolidado de que o sistema de votação brasileiro é exemplo para o mundo. Mas, novamente o Governo, sua equipe e apoiadores constroem falsos argumentos, que soam para a população brasileira como verdade, pois vem do Governo. Deve ser muito difícil para às pessoas mais simples entenderem que o presidente propaga notícias falsas.

Seja por linhas editoriais ou por financiamento dos governos, a partir do momento que os fatos são censurados, quais os danos que podem trazer à sociedade?

Andréa — Neste ponto podemos sim falar de censura! Tem acontecido algumas decisões que decorrem do conluio das forças conservadoras presentes nos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, as quais se utilizam de normativas já existentes e/ou criam novas, que legitimam a censura utilizando outros argumentos, como “segredo de justiça”; “proteção às crianças”, etc.

Como professora e pesquisadora, você acha que existe censura no país? Se sim, acredita que isso pode ser revertido como?

Andréa — Sim, existe censura! Sempre existiu, nunca deixou de existir. Mas como refleti na primeira questão, precisamos falar de opressões e entender a censura como uma delas. É a organização popular que pode reverter isso. Os movimentos sociais no geral, movimento negro, sindicatos, enfim, somente a construção de frentes coletivas podem trazer mudanças concretas. Para isso precisamos “queimar” os “Borba Gatos” que estão nas mentes e corações das pessoas. Só educação popular, que se materializa no dia a dia, nas pequenas reflexões, que podem se multiplicar. A população brasileira precisa romper com mito fundador racista, escravocrata, patrimonialista, autoritário, e entender que sua potência vem de longe. Estamos a 500 anos em luta!

Andréa Pires Roch é Mestre em Educação (UEM), Doutora em Serviço Social (UNESP), Pós-Doutora em Serviço Social (ESS-UFRJ), desenvolve estudos sobre temas que envolvem direitos da criança e do adolescente, em especial a questão das medidas socioeducativas. O atual foco de estudos de Andréa se refere a questão do racismo estrutural como elemento determinante das relações sociais brasileiras e as implicações que levam a violação dos Direitos Humanos. Tem abordado a questão do proibicionismo, do tráfico de drogas e as particularidades do juvenicídio brasileiro como resultante do racismo, encarceramento em massa e guerra às drogas. A pesquisa atual é sobre “Sistemas de Proteção e Garantia dos Direitos Humanos e Sociais Voltado à Infância e Juventude em Portugal, Angola, Moçambique e Brasil “. Além disso, tem desenvolvido ações de extensão universitária no campo da educação em Direitos Humanos coordenando o Projeto de Ensino e Extensão: Aquilombando a Universidade: fluxos de resistências e educação entre Brasil, Angola e Moçambique. Também é docente do Departamento de Serviço Social (UEL), atuando na graduação e no Programa de Pós Graduação em Serviço Social e Política Social.